Reportagem: Marcella Franco
Imagens: Centro de Memória do Instituto Butantan
Em 2025, o Hospital Vital Brazil (HVB) completa 80 anos de existência. Com mais de 100.000 prontuários registrados e média de 2.500 atendimentos de suspeitas de envenenamentos por ano, é o único serviço de saúde dedicado a pacientes acidentados por animais peçonhentos do mundo, como serpentes, escorpiões, aranhas e lagartas. Por isso, é referência nacional no tratamento de acidentes causados por esses animais, com assistência médica gratuita 24 horas por dia. E, como está instalado dentro do complexo do Instituto Butantan, permite um intercâmbio único entre o tratamento clínico, a pesquisa e a produção.
A história do HVB, no entanto, teve seus percalços. Houve quem quisesse fechá-lo, transferi-lo, e, nos anos 1980, uma crise de desabastecimento de soros trouxe um desafio adicional, na medida em que especialistas do Instituto Butantan, incluindo do HVB, foram convocados pelo Ministério da Saúde para a construção do Programa Nacional de Ofidismo. O hospital, com isso, se manteve forte e não apenas como uma unidade de atendimento, mas como símbolo da conjunção da assistência, da pesquisa clínica e da formação profissional. Para muitos, o Hospital Vital Brazil é mais do que um hospital: é um espaço de aprendizado e de suporte a unidades de saúde do Brasil inteiro, que até hoje recorrem a ele em casos de segunda opinião e diagnósticos dúbios, seja na esfera nacional ou internacional.

Registro da fachada do Hospital Vital Brazil em meados da década de 1980
O Instituto Butantan foi criado, oficialmente, em 1901. Seu objetivo era concentrar a produção de soro antipestoso para o combate da epidemia de peste bubônica que se abateu sobre o porto de Santos na virada do século XIX. Graças à atuação conjunta dos sanitaristas Vital Brazil, Emilio Ribas, Adolfo Lutz e Oswaldo Cruz, o surto foi logo controlado e o Butantan pode, alguns anos depois, se dedicar à produção de soros antiofídicos – uma inclinação pessoal de Vital Brazil, fundador do Instituto.
Nos anos 1920, a organização já era referência nacional e mundial na pesquisa com serpentes e na fabricação de imunoglobulinas antiveneno. Mas até então, os funcionários que sofressem acidentes envolvendo animais peçonhentos usados nas pesquisas, ou mesmo ao receber as serpentes que eram entregues pela população, recebiam um atendimento médico improvisado, quase informal. Para a população em geral, a situação também era precária – não havia, ainda, um sistema unificado de saúde habilitado para fornecer soros gratuitamente aos acidentados.

Otto Guilherme Bier, responsável pela criação do HVB, dirigou o Instituto Butantan entre 1944 e 1947 e, posteriormente, entre 1975 e 1976
Ainda assim, não havia consenso, naquela época, sobre a necessidade de dedicar esforços para a criação de instalações próprias para o socorro das vítimas. O herpetólogo Afrânio do Amaral, em sua segunda passagem como diretor do Instituto, de 1928 a 1938, defendia a ideia com afinco, mas terminava derrotado pelos pares sempre que a discussão surgia.
A guinada que transformaria o atendimento regional – e, mais tarde, nacional – aos acidentados se deu finalmente em 12 de novembro de 1945, em meio à gestão do imunologista e bacteriologista Otto Guilherme Bier, que assumiu o Butantan por modestos três anos a convite de Vital Brazil. Foi a caneta de Bier que firmou a autorização para a criação do Hospital Vital Brazil.
O sonho antigo ganhou vida não só porque era preciso ter uma solução mais regulamentar para o atendimento aos funcionários – não só os picados, mas também os que sofressem queimaduras e outros acidentes nos demais laboratórios da instituição – mas também porque os pesquisadores do Butantan ansiavam conhecer mais sobre os efeitos dos venenos animais no corpo humano. Batizado em homenagem a Vital, o novo hospital arremataria, assim, a missão pública da instituição: salvar vidas.
Fernando de Sousa Costa, político e agrônomo formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), de Piracicaba, tinha 55 anos quando foi escolhido como interventor federal de São Paulo, em 1951. Como experiência prévia, Costa acumulava a prefeitura de Pirassununga em 1912, um mandato de deputado estadual em 1919, a secretaria da Agricultura paulista de 1927 a 1930, e o ministério da mesma pasta de 1938 a 1941. Também fundou o Instituto Biológico e o Parque da Água Branca, batizado em sua homenagem.
Em janeiro de 1944, Costa recebeu o convite para visitar as instalações do Instituto Butantan. Junto do à época secretário de Educação Sebastião Nogueira de Lima, Costa liderou a comitiva que, conforme noticiariam os jornais do dia seguinte, “percorreu demoradamente as dependências do estabelecimento científico”.
Foram recebidos por Flávio Oliveira Ribeiro da Fonseca, que em questão de meses seria substituído por Otto Guilherme Bier no cargo de diretor do Instituto Butantan. Caminharam pelos setores de pesquisas da penicilina e pela seção de tifo exantemático, e saíram satisfeitos com o que encontraram. Os frutos mais vistosos da visita, no entanto, viriam só dali a alguns meses.

Primeiro diretor do Instituto Butantan (1901-1919 e 1914-1927), Vital Brazil não chegou a participar diretamente da gestão ou criação administrativa do HVB, mas seu trabalho está na origem da instituição
Bier e o interventor Sousa Costa estreitaram relações com o passar do tempo. Nos relatórios anuais da época, o diretor escreveu que, a partir dessa relação, foi possível fazer uma reorganização no Butantan, ajudando-o a ir “além de uma ‘snake farm’, onde se recebem e colecionam serpentes”.
Entre as ações previstas nesse movimento estava a construção do hospital voltado às vítimas de animais peçonhentos, sonhado desde os tempos de Afrânio do Amaral. As negociações avançaram, e a inauguração do Hospital Vital Brazil foi agendada para 12 de novembro de 1945. A clínica e o pronto-atendimento ocupariam o espaço onde anteriormente funcionava a casa do diretor do Instituto. Atualmente conhecido como Casa Afrânio, o prédio hoje abriga escritórios e salas de reunião que não são abertas ao público.
A cerimônia oficial de abertura do HVB contou com a distinta presença de Vital Brazil, que foi homenageado durante a festa – o fundador do Butantan faleceria cinco anos depois. Também esteve presente, de acordo com o relatório institucional daquele ano, o advogado Jorge Americano, então secretário de Educação de São Paulo e reitor da Universidade de São Paulo (USP).

Antiga residência do Diretor, atual Casa Afrânio, adaptada para a instalação do Hospital Vital Brazil em 1945
“O Hospital Vital Brazil mostrou desde logo corresponder a uma real necessidade”, escreveu Otto Bier no documento oficial ao fim de 1945. Seu entusiasmo era reflexo das 14 internações ocorridas até ali, todas de vítimas de picadas de animais peçonhentos. Um dos acidentados, mordido de forma grave por uma jararaca, era funcionário do Butantan, e foi salvo depois de entrar em choque por conta do veneno.
Quando foi inaugurado, o HVB contava com 15 leitos, dois quartos particulares, um pequeno laboratório, aparelho de raio x e algumas salas de consultas. Um biotério foi instalado próximo à garagem. Quem por ali chegasse e relatasse um encontro malfadado com um bicho venenoso era atendido no andar térreo, para então seguir a ordem do tratamento.
Pouco do mobiliário e equipamentos que compuseram o Hospital Vital Brazil em seu início foi propriamente adquirido com esse objetivo. Boa parte havia pertencido ao antigo Ambulatório de Endocrinologia Humana, instalado no Centro de Saúde Santa Cecília, uma unidade de saúde básica no bairro de mesmo nome, na capital paulista. Também havia leitos e móveis conservados havia anos no almoxarifado do próprio Butantan, ou em outras seções do Instituto. Era o caso dos microscópios, das estufas e da geladeira do hospital. O que não se pôde pegar em nenhum outro lugar, foi, então, comprado com dinheiro do caixa da organização.
Sob o comando do médico José Ignácio Lobo, o Hospital Vital Brazil terminou o ano de 1945 com o registro de 25 doentes acidentados por animais (oito por serpentes, nove por escorpiões, quatro por aranhas e outros quatro por animais não identificados); 24 altas; e um óbito. E, como por um certo tempo o HVB funcionou também como uma unidade de saúde para casos relacionados à endocrinologia – especialidade do doutor Lobo –, neste primeiro ano também foram realizadas 935 consultas, aplicadas 395 injeções, feitas 87 dosagens hormonais e 1.341 radiografias.
Ainda que os números do hospital parecessem satisfatórios, o diretor se ressentia da falta de material e, principalmente, da falta de pessoal. Ele desejava contar com “uma ou duas enfermeiras diplomadas”, como escreveu em um relatório anual do Butantan. A ajuda, entretanto, não só tardaria a chegar, como não seria apreciada pelo médico.
“A dificuldade em preencher o lugar existente advém, entre outros motivos, do padrão de vencimento que ao mesmo foi atribuído, bem mais baixo do que os correspondentes em instituições congêneres. Também se faz preciso um auxiliar para tratar dos animais e para pequenos serviços externos”, afirmou Lobo à época. Ele também queria trocar o aparelho de raio x “por um mais moderno (R-39 General Electric)”, e complementar o laboratório onde se faziam as dosagens bioquímicas e hormonais.

Fachada do Pavilhão Vital Brazil na década de 1950
Um ano e meio depois de sua inauguração, o Hospital Vital Brazil sofreria seu primeiro abalo. Findo o mandato de Otto Guilherme Bier à frente do Instituto, em maio de 1947, o parasitologista e microbiologista Flávio da Fonseca foi indicado. Um dos fundadores da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e cientista já renomado no Butantan, Fonseca tinha como incumbência exercer um mandato tampão até que um novo diretor fosse escolhido.
Adhemar de Barros, que acabara de assumir o governo do estado de São Paulo, nomeou para o cargo o médico Eduardo Vaz, que tomou posse em 11 de julho de 1947 – Flávio não participou da cerimônia de transmissão de posto, deixando no ar a suspeita de que o clima não andava dos melhores no alto escalão. Com pouco mais de dois meses à frente do Instituto, Vaz – que anos mais tarde seria creditado por preparar a primeira amostra da vacina BCG feita no Butantan –, tomou a decisão que marcaria uma nova fase na história do HVB. Por ofício, informou ao doutor José Ignácio Lobo que seus serviços já não eram mais necessários, e que, a partir dali, o hospital seguiria sem ele.
A saída de José Ignácio Lobo coincidiu com outra mudança importante na história do hospital. Com a administração reorganizada, o HVB foi transferido para o Pavilhão Vital Brazil, onde passou a funcionar junto ao Banco de Plasma. Deixava para trás não só as instalações da atual Casa Afrânio, mas também a prestação de serviços aos casos relacionados à endocrinologia, especialidade do diretor exonerado. Tornava-se, assim, um hospital focado nas vítimas de acidentes com animais peçonhentos.
Duas enfermeiras se revezavam nos cuidados dos pacientes internados nos seis leitos disponíveis naquela época – de dia, dona Lourdes; de noite, dona Benedita. Entre 1945 e 1947, antes da transferência, foram catalogados 304 pacientes. Em 1948, já no novo endereço e sob a direção do médico Lorena Guaraciaba, o HVB ganha um registro elogioso no Relatório Anual do Butantan: “O hospital vem dia a dia mostrando a sua importância”.



